terça-feira, 23 de setembro de 2008

O TEATRO DE BONECOS BRASILEIRO


MAMULENGO[1][1]:

Por Chico Simões e Alípio Carvalho Neto[2][2]

(O boneco é anterior ao homem. Mestre Sólon)

O primeiro registro de teatro de bonecos nas ruas do Brasil chega através de Luiz Edmundo em seu livro O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis[3][3]. Este texto revela que no século XVIII já eram conhecidos três tipos distintos de teatro de bonecos, entre estes, dois de rua.

Luiz Edmundo denomina-os de modo específico. São eles: “títeres de porta”, “títeres de capote” e “ópera de títeres”. Escreve sobre cada um deles, respectivamente:

Cá esta um, é uma porta escancarada, onde uma colcha de uma côr escandalosa se coloca latitudinalmente a dividi-la em duas porções distintas. Na parte superior, que é um vão, forma-se a boca de cena, sempre aberta ao boneco que aflora e gesticula animado pela mão de um homem escondido. [...] Não há cenário.

[...]

Aquém soleira o indefectível cego da sanfona ou rabeca[...]

A platéia pode ser curta mas é atenta e generosa. E não se compõe apenas, como talvez se pense, da massa vagabunda de ambulantes e escravos, boquiaberta tôda ela, à espera da bexigada final que os há de fazer arrebentar de rir. Há muita gente de meia de seda e de óculo de punho de ouro, que também pára e goza a ingenuidade do espetáculo, não esquecendo de escorregar a sua contribuiçãozinha.

Os títeres de capote, que eram ambulantes, andavam pelas feiras, pelos adros de igreja, em dias de festa, e por lugares de movimento maior.

Há Te-Deum em São Bento? No adro da igreja, necessariamente, haverá, pelo menos, um desses teatros de improviso, entre os mendigos e as negras vendedoras de cuscuz, de aluá e de laranja.
Curioso, porém, é ver a boca de cena dessa ópera improvisada, feita pelo próprio empresário com o planejamento amplo do seu capote, traçado de ombro a ombro, em linha horizontal, de tal sorte formando o campo necessário à movimentação do boneco.

Escondido na pregaria da capa, que tomba até os joelhos do homem-palco, está um guri que dá à personagem de pano e massa o movimento necessário.

O homem-palco é ao mesmo tempo, homem-orquestra, pois que, com os dedos repenica a viola da função que o capote nem sempre dissimula.

Deixemos, porém, o adro de São Bento, que os melhores títeres estão na parte baixa da cidade, e não são diurnos como os primeiros.[...]

É uma ópera de títeres, recém-montada, sala de fantoches, teatro de bonecos.[4][4]

Passa-se, agora, ao sertão brasileiro, “no ano da graça de nosso senhor Jesus Cristo de 1983”, O ambiente em que foi formado o teatro de bonecos “Mamulengo Presepada” é delirante.
Milhares de romeiros se deslocam rumo à “terra santa” de Juazeiro do Norte, no estado do Ceará. Profetas anunciam o fim do mundo: “de dois mil não passará”. Diversas ordens da igreja católica e apostólica romana disputam o espólio de almas deixado pelo “Santo” Padre Cícero Romão, um líder religioso e político que ali vivera na primeira metade do século XX, e que, envolvido com as disputas de poder, regional e nacional, fizera uma aliança estratégica com o mais famoso herói brasileiro, o bandoleiro Lampião, o rei do cangaço. O acordo visava combater o avanço da coluna comunista de Luís Carlos Prestes que percorria o Brasil pregando a salvação terrena dos homens. Desprezado pelo Vaticano, o Padre Cícero fora canonizado pelo próprio povo, que ainda hoje o venera como santo milagreiro. Os penitentes atropelam-se em peregrinação ao horto onde repousam seus restos mortais. Movidos pela fé, trazem ex-votos[5][5]. São milhares de cabeças, troncos e membros, muletas, fotografias de enfermos, mechas de cabelo, velas, fitas, flores de plástico e verdadeiras se confundem, enchem igrejas e salões sempre abarrotados de penitentes que deixam seus votos e sobem o horto para pagar a promessa.
Carregam pedras na cabeça, amarram-se em cordas apertadas com nós, açoitam-se em auto-flagelo, sobem ao calvário sertanejo ladeados por imagens que representam a via crucis do Cristo, chegando ao topo da serra numa mistura de êxtase e cansaço. Ali, prostram-se aos pés de uma estátua do Padre Cícero com mais de vinte metros de altura. Os mais afoitos tentam escalar o “Santo”, subindo pelos botões de sua batina. A polícia intervém, de imediato, com uma precisão incomum, mas a fé cega e o fervor místico desconhecem leis humanas. Mendigos e aleijados pedem esmolas, enquanto ambulantes anunciam produtos high-tech, made in China, contrabandeados do Paraguai. Vende-se de tudo: frutas, pastéis, sumos naturais, coca-cola, chapéus de palha e bonecos de barro; os produtos espalham-se pelo chão numa grande feira sob o sol escaldante. Garrafas de cachaça circulam numa clandestinidade mal dissimulada no ambiente sagrado do horto. Pedaços de carne assados na brasa são vendidos em espetos.
Crianças maltrapilhas contam em versos, por poucos tostões, a incrível história dos milagres realizados pelo “Santo” Padre Cícero Romão. Fotógrafos “lambe-lambe” misturam-se aos Polaroids para oferecer instantaneamente uma imagem do romeiro ao lad O TEATRO DE BONECOS BRASILEIRO o do “Santo”. Violeiros repentistas improvisam pelejas de cantoria, enquanto vendem folhetos de literatura de cordel. São histórias de amor e guerra, relatos “transhistóricos”, uma realidade e ficção que extrapolam o maneirismo, mágico e fantástico, da literatura “realista” da oficialidade latino-americana. Cegos cantam seus sofrimentos, suplicando esmolas e fazendo soar rabecas, violas e sanfonas, afinadas por dissonâncias autênticas que criam uma percepção extraterritorial, de tempo e espaço confundidos. Jesus Cristo, santos, guerreiros medievais, princesas e castelos juntam-se ao Padre Cícero e outros beatos, que ainda hoje vivem pelo sertão, fazem milagres e alimentam de fé um povo que só por ela vive. Comenta Gilberto Freyre:

Há um cristianismo ou catolicismo impregnado de influências não europeias que lhe vêm colorindo folcloricamente ritos, crenças e práticas. Há uma escultura: sobretudo de santos de pedra e de madeira. Há uma literatura oral, outra erudita e algumas intermediárias. Há o artesanato de couro, de palha, de madeira. A cerâmica. A arte do barro.5


Aqui se arma a barraca de brincar mamulengos. É o tópos em que a terra se move sob os pés e fica claro a sentença de Glauber Rocha: “Cultura popular não é o que se chama tecnicamente de folclore”. Em Juazeiro do Norte, Jerusalém sertaneja, a velha, o letrado conhecimento vigente da cultura popular brasileira revela-se um “pré-conceito”, um “pré-juizo”.

No bairro do Romeirão, a “Carroça de Mamulengos”, do Mestre Carlinhos Babau, prepara-se para mais uma brincadeira. A tolda é de madeira e revestida por um tecido florido. Se não há luz eléctrica, acendem-se os lampiões e lentamente a multidão aproxima-se. Alguns já são conhecidos, brincantes de outros folguedos, e se chamam, muitos, “Cícero” ou “Cícera” em honra do “Santo” padre. Homens, mulheres e crianças aconchegam-se junto à “empanada”, a arte do mamulengo não divide o público por faixa etária. Pedro Oliveira, o cego, afina a velha rabeca. É o último aviso, a função vai começar.

Primeiro os bonecos de dança, que são de vara ou luva e vara, fazem estrepolias, dão cambalhotas, rebolam e peidam provocando as primeiras gargalhadas, devolvendo ao mamulengueiro a satisfação do brincar. Uma das dezenas de histórias possíveis será apresentada, regada ao molho do improviso e dos diálogos diretos com a platéia que, afinal, quer sempre ver o circo pegar fogo e mete lenha na fogueira, fustigando os bonecos com provocações maliciosas. Os personagens são tipos bem conhecidos no lugar. As moças do baile são as “Quitérias”, o “Palhaço da Vitória” é ao mesmo tempo soldado e palhaço, “Janeiro Vai Janeiro Vem Janeiro Entra Janeiro Sai” alonga e encolhe o pescoço num movimento pervertido como seu próprio nome. Por acaso, a brincadeira hoje pode se chamar O Aniversário de Julieta e a Cobra que Comia Gente. “Mané Vou Lá Hoje” é o noivo. O “Velhinho Paruara” é tocador de sanfona.
“Benedito Bendito Grito Bacuráu da Silva Babau Dá No Oco Dá No Pau da Serra do Berdoega Inverga Mas Não Quebra Esticou Inrrolou Trançou Namorou Abraçou Beijou Xi Pou” é o nosso “anti-herói”. “Julieta” é a noiva, seu pai é “Capitão João Redondo” e “Catarina” é a cobra que come todos, salvo “Benedito” que após matá-la retira de seu estômago os engolidos, exceto o “Capitão João Redondo”, vilão e patrão autoritário que recebe, assim, o castigo merecido. “Urubu Limpa Mundo” surge para comer a cobra. Uma criança nasce em cena. Aparecem assombrações como a “Alma da Defunta Sem Vergonha”, o “Jaraguá” e o “Diabo José Luzbel Tufá”.
Dependendo do grau de “iluminação” de quem brinca e de quem assiste, uma brincadeira, nessas condições pode durar entre uma e quatro horas.

Saltando, mais uma vez, ou pulando literalmente para o carnaval de Olinda, topa-se com dezenas de bonecos gigantes que passeiam pelas ruas, roubando-lhes o fluxo intenso da festa. A estética dos “gigantões” brasileiros penetra em outras manifestações de rua e alarga o acervo das experiências cênicas dando-lhes um novo alento. É daí que o Mestre Carlinhos Babau retira a ideia do boneco-palco, o “Alegria”, com sua casaca que, ao ser aberta, transforma-se em palco para mamulengos.

Outro personagem, fácil de se ver nas feiras e praças movimentadas, é o boneco ventríloquo, contestador e malcriado muito usado por vendedores ambulantes de ervas medicinais, charlatões de grande credibilidade popular, que, certamente, sem o boneco falante, jamais prosperariam em seus negócios.

Tudo isto compõe a complexidade do universo do teatro de bonecos brasileiro, sempre renovado pela tradição. Ainda é possível encontrar no Brasil, diferente daquilo que se vê na Europa, estruturas socioeconômicas que, com suas contradições internas, levam o artista de rua a sobreviver, como um “menestrel” anacrônico, numa constante incerteza itinerante. É da instabilidade, de uma “opção” por falta de opção, que o mamulengo mantém-se vivo. Por funcionar, como divertimento sempre vigoroso, ou catarse cabocla, cujas regras estão fora do circuito “vital” dos “meios culturais competentes”, pois a norma surge de uma lógica da necessidade que condensa o brincante, o boneco e o público.

A maior parte daqueles que vivem a arte do mamulengo, fazem segundo uma tradição marcada pela oralidade e pouco, ou nada, sabem de sua história, rompendo qualquer compromisso com a idéia purista e conservadora de certos “folcloristas” que vêem no teatro de bonecos um dado estático, uma peça de museu, uma curiosidade prática e exótica para deleite de uma cultura turística. A dramaturgia popular em sua “ebulição e rebeldia histórica permanente”, como percebeu e praticou Glauber Rocha em seu cinema, adapta-se ao seu tempo e incorpora, sempre, a novidade revigorada do presente.

Ultimamente, grupos como o “Mamulengo Presepada”, “Carroça de Mamulengos”, “Circo Boneco e Riso” e outros mais têm proporcionado, a crianças e adolescentes que vivem nas ruas dos grandes centros urbanos brasileiros, uma oportunidade de convivência e de formação profissional por intermédio do teatro de bonecos e outras expressões artísticas de rua. São demonstrações efetiva de um acréscimo à tradição.

Manter uma tradição não é, simplesmente, copiar o que já foi feito ou fazer “tudo que o mestre mandar”. Entre outros mistérios, é impregnar-se, por convivência, da fisionomia e do espírito de uma herança vital, como prescreve Hermilo Borba Filho[7][7], desprezando as formas mumificadas que não comunicam sentimentos e visões de um mundo sempre personalíssimo.
Enriquecer o patrimônio herdado é dignificar a herança, e permitir que o teatro de bonecos desfrute e seja desfrutado pelo que provoca de atual em seus espectadores, desligando-se, portanto, do vínculo nostálgico e passadista tão cultivado pelo folclorismo. Era uma vez...


[1][1] Teatro de bonecos popular como é conhecido em Pernambuco. Palavra de etimologia incerta: talvez mão + molenga (mole) = mamulengo.
[2][2] Chico Simões – Fundador do “Mamulengo Presepada”, há quinze anos viaja pelo mundo brincando com bonecos. Conviveu com vários mestres e estuda a tradição. Atualmente é bolseiro do Ministério da Cultura brasileiro e com o apoio do CENDREV (Portugal) investiga os quinhentos anos do teatro de bonecos no Brasil e em Portugal. É palhaço.
Alípio Carvalho Neto – Escritor, ensaísta e músico, é, atualmente, investigador do Instituto Cultural de Macau e da Universidade de Évora, onde prepara tese de Doutoramento. Às vezes acompanha palhaços.
[3][3] Luiz Edmundo (1956). O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis. III vol. 4. ed. Rio de Janeiro: Conquista.
[4][4] Op. cit., pp. 537-540.
5 5 Gilberto Freyre (1978). Alhos e bugalhos: ensaios sobre temas contraditórios: de Joyce à cachaça; de José Lins do Rego ao cartão postal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. p. 112.[6][6] Objeto, quadro ou imagem que se expõe em cumprimento de uma promessa, muitas vezes, moldado para representar iconicamente, por exemplo, a parte do corpo que se encontrava enferma.
[7][7] Cf. Hermilo Borba Filho (1987). Fisionomia e espírito do mamulengo. 2. ed. Rio de Janeiro: INACEN.

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